Ecos dos Assassinatos de uma Mosca

Ser ou não ser uma Nuvem? ou Ecos dos Assassinatos de uma Mosca

Resumo: o presente texto trata da encenação do sujeito multifacetado no ciberespaço através da análise da peça “Lullaby for a dead fly”, componente do trabalho de net.art “Mouchette.org” (1996), de autoria de Martine Neddam. No cruzamento das palavras da própria autora com ideias de Nathanael E. Basset, Joanne Lalonde, Jean Baudrillard, Bruno Latour e Vilém Flüsser, explicitam-se características e consequências da ascensão de personas virtuais como uma polifonia de vozes entre o humano e o não-humano.

Palavras-chave: Mouchette.org, net.art, personas virtuais, híbridos.

 Abstract: the present article deals with the staging of the multifaceted subject in cyberspace through the analysis of the piece “Lullaby for a dead fly”, component of the work of net.art “Mouchette.org” (1996), authored by Martine Neddam. At the intersection of the author’s own words with ideas of Nathanael E. Basset, Joanne Lalonde, Jean Baudrillard, Bruno Latour and Vilém Flüsser, is made explicit characteristics and consequences of the rise of virtual personas as a polyphony of voices between the human and the nonhuman.

 Keywords: Mouchette.org, net.art, virtual personas, hybrids.

Artigo publicado na Revista Farol, n. 14, dezembro de 2015, pp. 47-60. 

Essa charge de Peter Steiner é uma das imagens sobre a popularização do acesso à internet mais repetida e parodiada, desde a adoção do NCSA Mosaic.[3] A imagem retornou com força 20 anos após seu aparecimento, como caracterização potente das crenças na internet como “terra de ninguém”. Seu conteúdo singelo ganhou uma carga extra de ironia diante dos escândalos de espionagem envolvendo agências de inteligência americana e controle de fluxo de dados civis (FLEISHMAN, 2013).

Toni Sant, na introdução para “Rape, Murder and Suicide Are Easier When You Use a Keyboard Shortcut: Mouchette, an Online Virtual Character” (2005), cita a charge de Steiner como referência a construção de personas virtuais. Naquele momento a autoria do trabalho de net.art “Mouchette.org” (1996)[4] era uma incógnita. O segredo sobre a autoria do trabalho, que apresenta o site de uma artista de 13 anos (figura 2) repleto de conteúdo com alusões a sexo e suicídio, rendeu polêmicas e alimentou a fama de Mouchette como persona virtual (SALVAGGIO, 2002). Além dos problemas decorrentes da união de tais conteúdos a imagem infantil, “Mouchette.org” abria uma rede de apropriações sobre a personagem Mouchette. Originada na literatura de George Bernanos em 1937, com “La Nouvelle Histoire de Mouchette” (2011), a criança reaparece no filme de Robert Bresson de 1967, “Mouchette, a virgem possuída”[5], de modo que o nome escolhido para o trabalho de Neddam, assim como outras referências presentes no site, formaram outra camada de apropriação sobre essa personagem.[6]

Em 2010 a francesa Martine Neddam assumiu a criação do site. Essa espécie de postura, como um reconhecimento de que o valor do anonimato diria respeito a uma época passada, reconfigura não apenas nossa relação com esse trabalho específico, mas indica uma significativa mudança na encenação dos sujeitos após a disseminação da internet. Ainda em 2005, a expressão de Sant, retirada de uma comparação com a liberdade da fantasia pública carnavalesca descrita por Mikhail Bakhtin, em “Rabelais and His World” (1984, p. 7), colocava a internet como uma espécie de carnaval do quase-anonimato.

É certo que a charge de Steiner não se concretizou, embora muitos ainda acreditem proteger supostas identidades privadas, pessoais, enquanto acessam a internet através de seus mobiles, recebem atualizações automáticas de diversos aplicativos, executam as costumeiras pesquisas com mecanismos da Google ou salvam seus endereços favoritos nas configurações do seu “navegador particular”. Mas, a não concretude da charge de Steiner não se deu por alguém (a CIA, o governo, os terroristas, os crackers) saberem sua verdadeira identidade. A charge de Steiner não funciona porque pressupunha um lado falso e um verdadeiro na construção dos perfis público e privado. O equívoco não estaria em crer no anonimato online, mas em pressupor uma identidade qualquer.

As razões para isso talvez já estivessem expressas na entrevista que Mouchette[7] concede a Manthos Santorineos, na sequência do mesmo documento em que Sant professa o quase-anonimato do carnaval ciberespacial. A persona virtual se expressa, conversa com o entrevistador assim como interage com o público em suas páginas. Ao falar de sua relação com o público, Mouchette ressalta que, caso ela fosse o avatar de alguém, faria coisas necessárias e poderia mesmo sofrer por isso. “When I die, a part of your existence would die with me, not just numbers, but a whole part of your life.” (MOUCHETTE, 2005, p. 205). Essa é uma voz trágica, mas de uma tragicidade que ironiza a crença de que seja possível ser um “morto-vivo” com uma vida puramente online. Mouchette ironiza a pureza que almeja determinar o sujeito dono de uma voz, humana ou não-humana. “All I am is words and pixels put together by means of codes and viewed on a monitor.”

Na sequência, Mouchette explica o fato de outros websites terem sido abertos “como” Mouchette e responderem perguntas através de seu e-mail pessoal. O sentido de dar respostas ou fazer perguntas sofre um forte abalo diante da possibilidade de adoção simultânea de ambos os papeis, locutor e interlocutor. Esse abalo ocorreria em qualquer entrevista. Mas, é mais extenso quando se trata de ambientes online, pois o sistema que o mantém em funcionamento está baseado em ações e respostas de pontos distintos para que processos sejam desencadeados. Caso houvesse a intenção de justificar as ações de Mouchette como originadas de um sujeito localizável, como a autora Martine Neddam, tudo que envolve esse nome soaria como um engodo.

How many different persons scattered all over the world are writing this very e-mail that you will publish as an interview? The answer to this enigma is hidden inside Mouchette.net. You, Manthos, asking these questions, could yourself be a member of Mouchette.net, and maybe you are already. Maybe YOU are answering the questions you asked Mouchette. § To the question “who hiding behind Mouchette?” there can only be one answer: “Myself”! (MOCUHETTE, 2005, p. 205).

Essa constatação reveste de maior peso uma das perguntas feitas por Mouchette em sua página e citada na entrevista: “How can I write this since I’m dead?”.[8] A resposta à questão está em como ela pode gerar respostas. A voz que pergunta deve ser creditada mais a reação da persona virtual Mouchette do que a possibilidade de existência de um sujeito humano do outro lado da tela. Esse outro lado não deve ser considerado como um plano de existência que obedeça às mesmas normas que o suposto Real.

A reação sobre as ações do espectador-agente[9] em “Mouchette.org” surge como perguntas. Em “Lullaby for a dead fly”, [10] uma peça com várias páginas presente no trabalho, encontramos, primeiramente, uma imagem com pouca definição, mas “esticada” até deixar a mostra seus pixels. Sobre a imagem de duas mãos que ajeitam uma substância branca sobre um prato enquanto seguram um cigarro, se vê um botão cinza a passear freneticamente pela tela como se fosse uma mosca.[11] O som que acompanha o “carregamento” da imagem também nos leva a pensar em uma mosca. Esse botão cinza traz a inscrição “it’s me” em letras pretas e seu movimento é tão rápido e aparentemente aleatório que para a correta leitura da inscrição é necessário algum esforço.

As primeiras tentativas de clicar no botão-mosca são infrutíferas, pois não adianta persegui-lo com o cursor. É necessário esperar em um mesmo ponto até a oportunidade de esmagá-lo com a seta. Ao acertar o botão, somos direcionados para uma nova página, na qual a “mosca-menina”[12] nos inquire sobre as razões pelas quais a matamos ou outras dúvidas que lhe venham à “cabeça”.[13] A única saída aparente na nova página é um botão com o indicativo “Tell me”. Através dessa escolha surge uma nova janela sobre a anterior, com a pergunta “How can I write this since I’m dead?”, um espaço para inserção da resposta, outro para nosso nome e por último nosso e-mail pessoal.

A cada “giro” que fazemos sobre o trabalho a pergunta se torna mais estranha. A personagem morta agora é a “mosca-menina” e ela nos fala do limbo no qual a atiramos e ao mesmo tempo somente assim adquire vida. Somente com sua morte a personagem pode se expressar, nos inquirir e nos levar a produzir algo em sua homenagem. Pois, tantas respostas como são dadas pelos muitos espectadores-agentes de “Mouchette.org” não ficam perdidas no mesmo limbo de onde provem a voz de nossa mosca-menina.[14]

Todas as respostas dadas pelos especadores-agentes-assassinos-de-mosca são reorganizadas por Mouchette, sob a programação de Marc Bloom, na “Lullaby for a dead fly”. De acordo com a extensão da resposta, cores, direções e velocidades são atribuídas para as palavras, que são animadas sobre a imagem de uma pintura com moscas e uma música fúnebre a acompanhar o movimento.[15]

A partir do ponto em que as ações dos espectadores-agentes são incorporadas a “carne sintética” de “Mouchette.org”, não há mais como distinguir a máquina pensante programada da subjetividade do humano colaborador.[16] Essa nuvem de informações que dá corpo a “Mouchette.org” é inerente à formação do sujeito online. E mesmo como uma nuvem de forma inapreensível, essa construção ainda pode ser encarada como persona:

Ao analisarmos a persona, dissolvemos a máscara e descobrimos que, aparentando ser individual, ela é no fundo coletiva; em outras palavras, a persona não passa de uma máscara da psique coletiva. No fundo, nada tem de real; ela representa um compromisso entre o indivíduo e a sociedade, acerca daquilo que ‘alguém parece ser’: nome, título, ocupação, isto ou aquilo. De certo modo, tais dados são reais; mas, em relação à individualidade essencial da pessoa, representam algo de secundário, uma vez que resultam de um compromisso no qual outros podem ter uma quota maior do que a do indivíduo em questão. A persona é uma aparência, uma realidade bidimensional, como se poderia designá-la ironicamente (JUNG, 2011, p. 46-47).

No caso de “Mouchette.org”, essa bidimensionalidade estende-se para a zerodimensionalidade.[17] Há a persona Mouchette, mas o conjunto de saídas e entradas de sua virtualidade multiplica-se na medida em que os diálogos lhe enriquecem, lhe dobram e lhe desdobram. Se voltarmos à charge de Steiner, quando o primeiro cachorro diz “na internet, ninguém sabe que você é um cachorro”, o segundo deveria responder “cachorro, qual cachorro?”. Essa pergunta é sobre a encenação do sujeito online.

A representação do Eu é uma temática recorrente na arte mídia. Mas, essa representação sofre as consequências inevitáveis da midiatização do quotidiano, ocorrida de modo acelerado nas duas últimas décadas do século XX. Para Joanne Lalonde (2003), o sujeito que se representa no ciberespaço não seria mais o sujeito culpado, diagnosticado por Freud entre os conflitos narcisista e edipiano. Observaríamos, na atividade online, a passagem do sujeito culpado para o sujeito trágico/irônico. A expressão das ficções antes construídas na rivalidade entre o ego e suas representações, agora se encena em outro palco, o ciberespaço.[18]

Talvez o primeiro caminho a ser pensado na construção de um sujeito nascido no ciberespaço seja a dúvida sobre a sua função representativa: seria esse sujeito a representação “verdadeira” de um sujeito palpável ou se trataria de uma “imagem falsa” (mentirosa) de um sujeito que se recusa a representar-se? Assim vimos na dúvida impressa pela pergunta canina na charge de Steiner. Já nos termos mais recentes, popularizados por redes sociais e microblogs: seria um perfil falso ou um perfil pessoal? Tal dúvida se forma por considerar mais a diferenciação desses tipos de perfil que a aceitação da encenação de personas virtuais para além de representações do real.

A colocação de Mouchette como uma mitografia (LALONDE, 2003) é bastante apropriada, pois sua construção depende da resposta do público e tal resposta somente pode ser dada quando há o aceite do contexto fantasioso no qual a “menina” fala. Aceitar a premissa da fantasia, de que a explicação é menos importante que o fato, é fundamental para travar contato com uma aparência personal composta por uma profusão de dados de origens variadas. Sua afirmação de que não passa de palavras e pixels, apesar de conotar uma negativa em relação ao mundo físico, sublinha sua “carne sintética” e dá peso para esse corpo zerodimensional ao qual usuários orgânicos se ligam e alimentam, mediados por aparelhos que misturam as duas carnes.

Para Basset (2013), na sociedade das novas mídias a mediação torna-se “remediação” e consequentemente redefinição. Diante disso, pergunta-se como lidamos com a nova esfera pública, com nossas identidades pessoais e como construímos a nova esfera privada. Quando o autor fala em “remediação”, concorda com Bolter e Grusin (2000), os quais evidenciam que hoje nenhum meio se afirma de modo independente e não pode possuir um espaço cultural próprio. A TV, o cinema e a música estão na internet, assim como nós, e os computadores fazem parte de todos, direta ou indiretamente. Se pensarmos as possibilidades de remediação como (i) “mediation of mediation”, (ii) “inreparability of mediation and reality” e (iii) “reform” (BOLTER;GRUSIN, 2000, p. 55-56), perceberemos que a mediação entre humanos e tecnologia é uma repetição. Como humanos, não nos separamos de tecnologia e isso também nos torna seres mediadores. O que Bolter, Grusin e Basset colocam com a ideia de remediação são os círculos de tradução entre todas as mídias componentes do universo digital, nós e os conteúdos que processamos.

Para Turkle (2012) a possibilidade de “dizer algo” publicamente, trazida com as novas tecnologias, significa um novo estado do self, dividido já de início entre dois supostos Eu: um habitante da tela e outro da vida física. Ambos os Eu construiriam sua pessoalidade em público, poderiam ser sozinhos ou dividir algo com alguém especial enquanto misturados a outras identidades insuspeitas. “Perhaps, traditionally, the development of intimacy required privacy. Intimacy without privacy reinvents what intimacy means. Separation, too, is being reinvented” (TURKLE, 2012, p. 172). Não diferenciar a vida física da vida online, a intimidade da publicidade, traria a sensação de que estamos “continuamente conectados”, ao menos enquanto nossos perfis públicos existirem.

Em todo o caso, Basset ainda nos lembra de que, apesar dessa inseparabilidade das duas vidas, física e virtual, a vida que podemos carregar no bolso seria uma parte do nosso quotidiano. A identidade online seria um fragmento da identidade de um sujeito já sem totalidade. Esse fragmento, no entanto, diferente de “máscaras”, usadas em outros espaços de interação, dá permissões que somente a ficção possuía. Como nas ideias de Mouchette (2005), com um atalho de teclado é fácil estuprar, matar e morrer com liberdade. Mouchette “invites user to play with our ambivalence towards violent behavior in virtual spaces, by attempting to attach emotionality to otherwise attempts to rape and main the artist’s avatar” (BASSET, 2013, p. 20).

Mas a virtualidade dessas relações vai além dessa violência irreal. Em resposta a colocação de Michael Lind para que esqueçamos o ciberespaço,[19] Basset diz que a viabilidade desse “eu-sombra” continuamente disponível como fragmento desdobrável do eu físico somente poderia ser derrubada caso fosse impossibilitada a crença no anonimato na internet. A crença no anonimato torna a internet um jeito público simultaneamente privado de ser (BASSET, 2013, p. 21).[20] “Our virtual identities are merely another aspect of our singular selves, part of the multiplicity of identities we utilize throughout or lives, tided to various roles, contexts, times and relationships” (BASSET, 2013, p. 22). Por isso, quando falamos em sujeito multifacetado na vida online, não significa que esse sujeito seja multifacetado por conta da vida online, mas sim que a vida online é uma nova situação para esse sujeito já (e talvez sempre) fragmentado.

Esse sujeito construído por fragmentos não necessariamente deve ser compreendido como um ente feito por pedaços irreconciliáveis. Para o sujeito multifacetado a porcelana estilhaçada não deixa de ser porcelana. São as relações significativas de cada grão da identidade que lhe conferem sua natureza comunicativa. Assim, a analogia mais adequada para a identidade fragmentada do sujeito aderido a vida online talvez seja com a nuvem. Sua nebulosidade permite o atravessamento e a dupla via de desfazer-se na invisibilidade ou condensar-se na intempérie. As partículas do sujeito nebuloso não são unas, mas podem ser recolhidas na unidade de um entendimento, a nuvem. Ainda há de se notar que, dentro da nuvem não há reconhecimento de sua instabilidade, mas apenas a cegueira confortável da névoa. É preciso estar nos limites da nuvem para entender sua instabilidade, sua unidade fragmentária.

É útil equalizar a ideia de fragmento com a ideia de aforismo. Se fragmento herda as consequências do ato de frangere (franzir, quebrar), com libertação das formas pelo caos do rompimento, o aphorizen vem dividir, separar, romper e dessa maneira: definir (VECCHI; FINAZZI-AGRÒ, 2007, p. 79). O aforismo sobre aforismos de Robert Musil, “the smallest possible whole” (HODKINSON, 2004, p. 26), talvez seja o que melhor nos compete para pensar esse sujeito nebuloso, pois, apesar de fragmentado, ele sustenta a abertura do possível. Ser a menor totalidade possível agrega a esse sujeito a qualidade de eventual. A cada cruzamento, diálogo, rompimento, mescla e sobreposição, ocorridas na virtualidade, o sujeito nebuloso experimenta seu modo fragmentário de ser. A cada evento surgem definições passageiras, momentâneas, dentro do possível que se dissolve no abraço de outras nuvens.

O que vemos dos diálogos e atritos de sujeito nebulosos, como objetos analisáveis e criticáveis, talvez sejam fenômenos da ordem do residual. Baudrillard pensa o fragmento e o aforismo não como cortes e rompimentos, mas sim como resultado de singularidades efetivas. Assim, o hábito poético poderia ser visto como um discurso de singulares fortuitas, avesso à totalidade e aproximado do detrito (BAUDRILLARD, 2003, p. 117). Essa nuvem de partículas, somente observáveis quando encenadas, impede qualquer espécie de localização. Onde começa e onde termina uma nuvem, se as partículas voam por todo ar, adentram nossos corpos na inspiração e somem sem serem vistas com o que há de transmissível em nossos pulmões? Localizar particularidades nessa rede que foge a escala humana depende de escaparmos de qualquer concepção de local e global que se pareça com o estabelecimento de fronteiras.

Fronteiras servem bem ao processo de colonização e por isso colonizar é o mesmo que retardar os diálogos e as misturas inevitáveis. O contato com o outro não depende de limites concretos, mas de fluxos, movimentos, relatos e trajetos, os quais podem ser mais bem compreendidos pela passagem que pela fronteira. As fronteiras causam a impressão de oposição entre local e global. Com fluxos e passagens tal oposição se dissipa. No exemplo de Latour (2011, p. 115), uma ferrovia é local ou global? Sob uma ótica é local, mas também é limitadamente global e apenas não pode ser dita universal. Do mesmo modo, a ciência, que erige altas fronteiras entre sujeitos e objetos, não é universal. Suas leis somente funcionam dentro de suas “aldeias” e com a prática de seus instrumentos, isto é, nas condições ideais de seus laboratórios. Por mais que a ciência insista que suas leis funcionam mesmo sem qualquer instrumento presente, tal lógica é a mesma da crença dos bimin-kuskumin da Nova Guiné, que creem ser toda a humanidade (LATOUR, 2011, p. 117). Ambos ignoram que suas causas são internalizadas e encobertas e suas consequências passam a atuar como suas próprias bases. Assim como a ferrovia é uma rede global na qual sempre nos encontramos numa experiência local com agentes[21] humanos e não-humanos, qualquer instituição dita global, como o mercado mundial, a ONU, o Governo ou os Ministérios, são emaranhados de agentes humanos e não-humanos e somente assim podem ser experimentados. O “macro” não é feito de uma matéria de natureza diferente daquela que compõe o “micro”. Se pensarmos esses agentes como nuvens de particularidades ocasionais, parece não haver distinção entre Eu e Outro. Sob essa ótica, de fato, não existiria o Outro recorrente em todos os discursos de alteridade, como um “eles” oposto ao “nós”. Todo o contato com estruturas, macro ou micro, local ou global, humano ou não-humano, se dá pela mesma matéria. É a tradução, o documento, a prática, os instrumentos relacionados que nos permitiriam abarcar o que chamamos de Outro, ou “eles”. Da mesma forma, somente podemos atingir essa macroestrutura através dessas relações. Não há o que tocar que não seja micro e local, tribal e particular.

Perguntar onde o sujeito nebuloso se localiza é como perguntar: Ser ou não ser o Outro? Para Mouchette essa foi a questão colocada em 2007 e a resposta talvez tenha sido bem direta: ser o Outro era a melhor maneira de cometer suicídio sem deixar de viver. Dito sob outra ótica, permitir que Outro seja o Eu é o melhor modo de Mouchette permanecer viva. “To Be Or Not To Be Mouchette?” foi uma animação exibida numa fachada do Museu de Arte Contemporânea de Siegen, na Alemanha, em 2007.[22] Como uma peça exibida fora da internet, poderíamos pensar numa fronteira mais explícita entre a persona virtual Mouchette e os espectadores-agentes.[23] Mas, apesar de se configurar num objeto determinável no espaço e no tempo, “To Be Or Not To Be Mouchette?” surge exatamente das dúvidas sobre essa fronteira. Não por acaso, a artista deixa evidente a remissão ao famoso monólogo shakespeariano.

O trabalho começa a se formar com as respostas dadas por espectadores-agentes a pergunta “What’s the best way to kill yourself when you’re under 13?”.[24] O objetivo inicial afirmado por Mouchette seria de uma espécie de “pesquisa de mercado” para fabricar os melhores “brinquedos de suicídio” para seu público. No entanto, as respostas permanecem disponíveis e categorizadas pela artista.[25] O espaço de resposta, inicialmente, delimitaria um círculo para a fala individual, mesmo que pública. Cada interlocutor mantém seu nome vinculado ao texto inserido como proposta de suicídio. A partir desse ponto, cada nome está aberto a tornar-se um avatar e compor a peça programada por Mouchette. Os nomes são anexados a imagens de conhecidos suicidas da cultura pop, de Marilyn Monroe a Kurt Cobain. Essas imagens, assim como o fundo fixo da animação, mantém a aparência improvisada pela qual “Mouchette.org” passou a ser reconhecido (figura 3). A imagem inicial da animação evidencia imediatamente que a peça não apresenta um clássico solilóquio. Duas cadeiras vermelhas ladeiam um tronco de árvore cortado próximo da raiz. Logo, surge à esquerda da tela uma figura cabisbaixa vestida com trajes natalinos, sobre a qual há uma faixa preta contendo a inscrição “Mouchette”. Essa identificação do avatar acompanhará cada uma das figuras que se sucedem sobre o fundo de árvores pixeladas. Algumas desaparecem mais rapidamente, assim que “pronunciam” sua fala, outras permanecem para se “pronunciarem” junto com as demais.

O que foi apresentada como uma animação fixa em Siegen, após sua primeira exibição, é revertida para a internet e ganha sua injeção de continuidade e aleatoriedade. O dialogo estranho de várias vozes que não conversam cresce e se reconfigura na medida em que agrega novos nomes e respostas. Apenas o início da conversa permanece sempre o mesmo, com as duas questões colocadas pela natalina Mouchette: “How can I write this since I’m dead? And why did you kill me?”. A sequência se modificará a cada vez que a página for atualizada. Talvez, no formato online, a peça se aproxime do desejo expresso por Mouchette de exibir um uníssono de dissonâncias, uma espécie de convergência mental para um monólogo de sujeito multifacetado. “My personality embraces all of my participant’s minds and together we form a collective consciousness pondering over questions of life and death in the digital era” (MOUCHETTE, 2007).[26]

A realização dessa “consciência coletiva” através da incorporação das respostas dadas por participantes alheios a edição do material ou a programação que promove a aleatoriedade da animação online é, certamente, questionável. No entanto, por tratar-se “Mouchette.org” de um trabalho e uma persona cuja carne, o pensamento e a voz são compostos pelas palavras e pixels vistos na tela, ao serem incorporadas à animação online, essas vozes e nomes de participantes passam a ser técnica e conceitualmente parte indistinguível da persona virtual. Sem abandonar a multiplicidade de vozes, o estranho monólogo de Mouchette encena uma voz composta por uma multiplicidade de vozes.

O desconforto na aceitação de que isto é um sujeito formado por uma virtual infinidade de particulares talvez esteja na expectativa de que a condição residual desse sujeito se desse pela fragmentação de algo uno. Se esperássemos que esse sujeito se fragmentasse de dentro para fora, para então se tornar uma espécie de nuvem, trabalharíamos com o pressuposto de que em alguma época encontraríamos um sujeito centrado e total. Ao abandonar esse pressuposto, teríamos de entrada um sujeito nebuloso, o qual agregaria particulares na medida em que atingisse os limites de sua identificação e passaria por processos de mútua incorporação com outras nuvens.

A origem do movimento fragmentário influencia na natureza dos detritos resultantes. A dissolução do sujeito pela interlocução com outros sujeitos dissolvidos é capaz de gerar movimento, trajeto e relato, cruzar informações e instituir uma rede. O contrário disso, a interlocução do sujeito com vozes internas, no pressuposto de uma unidade a ser dissolvida, resulta numa indistinção esquizofrênica. Essa diferença é a mesma que pode ser observada entre dois casos de narrativa por imagens.

No primeiro, acessamos “My boyfriend came back from the war”, trabalho de net.art pensado por Olia Lialina e disponibilizado online também em 1996. A página inicial do trabalho[27] apresenta apenas um fundo preto com duas frases em letras brancas, inscritas na parte superior direita da tela: “My boyfriend came back from the war. After dinner they left us alone”. Ao sobrepor o cursor as frases, elas demonstram serem um “atalho”, nosso primeiro acesso a uma narrativa aparentemente simples e romântica, composta por imagens e textos em preto e branco. Essa foi uma das primeiras propostas de net.art a considerar em alto grau a influência do espectador-agente nos destinos do conteúdo exibido na tela do computador (SOMMERSETH, 2010, p. 25). Cada clique sobre as imagens e palavras, surgidas na tela a partir da decisão de acessar o conteúdo virtualmente presente no primeiro atalho, desencobre outras imagens e frases. Aos poucos a tela é dividida e subdividida em quadrados, que podem ser manejados por sua escala de importância para o “leitor-agente”. Ao arrastar os limites dos quadrados com o cursor e escolher qual frase ou imagem deverá ser modificada esse “leitor-agente” mescla sua descoberta das narrativas de imagens possíveis com o conteúdo preexistente e ordenado de maneira simples por Lialina. Diante dessa mistura, pergunta-se: quem é o narrador? A resposta mais plausível diz que o narrador é um híbrido do que está contido na página com o que for trazido pelo “leitor-agente”. No entanto, tudo que há na página existe somente de modo virtual e a narrativa, propriamente dita, somente pode se afirmar existente a partir do momento em que ocorre a ação interessada do “leitor-agente” de atualizar conteúdos virtuais supostamente contidos num “atalho”. Esse narrador aparece quando há o abandono da esperança de que houvesse qualquer narrador “integral” antes do início da atividade prática com o trabalho, da dissolução da voz que narra.

Situação oposta encontra-se no narrador de “La Jetée: photo-román” (1962), filme de Chris Marker. A película é composta por imagens fotográficas ordenadas como memórias soltas de um viajante do tempo. A trama acompanha um remanescente de uma grande guerra, que sobrevive com outros humanos em abrigos subterrâneas da cidade de Paris. Submetido a um procedimento experimental de viagem no tempo, o homem persegue sua única lembrança de um passado de paz: o rosto de uma mulher visto na plataforma de Orly antes do início da grande guerra. Ao retornar para a plataforma o sujeito revive a lembrança e também experimenta a sensação de olhar sobre si mesmo, posto que ele estava presente na lembrança como criança. O ato de inserir-se na sua própria lembrança executa uma dobra interna difícil de descrever, pois é a fragmentação da persona através de representações provenientes simultaneamente da identificação e da diferenciação. Sem perceber que ao voltar sucessivas vezes ao passado aumentava sua influência sobre uma narrativa existente apenas pela sequência de lembranças que ele dissociava de si mesmo, o narrador prossegue até o limite da primeira lembrança.

Esse é um ponto sem retorno para o sujeito. Desligado de uma condição presente, na qual já se encontrava fragmentado em suas lembranças, o narrador não encontra bases para diferenciar as diversas realidades virtualmente concebíveis por dobras internas. Por fim, suas lembranças não são mais necessárias para acesso ao passado, pois executam narrativas de um Eu que não se reconhece no presente. A solução talvez fosse encontrada no abandono de todas as lembranças para que fosse possível a fantasiosa construção de um Eu sólido e centrado.

O sujeito multifacetado aparece na conjunção de nuvens de particularidades. É no interior dessa trama, ou rede, que o contato com “Mouchette.org” é aqui descrito. As nuvens que se misturam para desenhar essa rede são humanos e não-humanos, todos agentes com vozes válidas, as quais temos tentado ouvir. Embora a cada momento essa audição torne-se mais conflituosa, o olhar sobre “Lullaby for a dead fly” sombreia passagens do que chamamos sujeito nebuloso, multifacetado e polifônico, encenado no ciberespaço.

Referências

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LEMOS, André. A comunicação das coisas: teoria ator-rede e cibercultura. São Paulo: Annablume, 2013.

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VECCHI; Roberto; FINAZZI-AGRÒ, Ettore. Pior do que ser assassino… . In: Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, n. 29, p. 67-86, 2007. Disponível em: <http://periodicos.unb.br/index.php/estudos/article/view/2077  Acesso em: 12 dez. 2014.

[1] PPGA-UFES. E-mail: objetoquadrado@gmail.com.

[2] Peter Steiner. The New Yorker 69, No. 20, 5 July 1993, p. 61.

[3] O Mosaic foi o primeiro software para acesso a informações disponibilizadas online a possuir uma interface gráfica com exibição de textos e imagens. Desenvolvido por estudantes da Universidade do National Center for Supercomputing Applications (NCSA) da Universidade de Illinois, o Mosaic foi lançado em 1993 e saiu do mercado em 1997.

[4] A página inicial do trabalho pode ser acessada em <http://mouchette.org

[5] Um pequeno problema surge dessa apropriação, o que levou a viúva de Bresson a entrar com processo para a retirada de algumas das referências diretas (LUINING, 2004). Ainda assim, a página permaneceu online. Após ser comprada pela coleção “computerfinearts.com”, o questionário com referência direta ao filme de Bresson permanece acessível em <http://www.computerfinearts.com/collection/mouchette/filmxx/

[6] Para uma descrição mais detalhada do trabalho, ver HIPÓLITO, 2014.

[7] Mesmo após o reconhecimento público da autoria do trabalho, a persona Mouchette mantém sua voz ativa, concede entrevistas, envia e-mails aos usuários do site e “realiza seus trabalhos”. Sua voz pode expressar-se tanto por mecanismos de resposta programados para interações com os usuários quanto pela atividade de outros sujeitos que assumem a voz de Mouchette.

[8] As referências à morte presentes em “Mouchette.org” são parte da apropriação realizada sobre a personagem Mouchette. No livro de Bernanos, assim como no filme de Bresson, a menina de quase 13 anos comete suicídio ao final de uma história de ostracismos e abuso. A persona virtual Mouchette, por sua vez, já em seu surgimento se considera num processo contínuo de morte não realizável. Assim como não chega a completar seus 13 anos de idade, a persona virtual permanece viva nas informações inseridas pelos usuários e ganha voz a cada vez que sua morte gera conteúdo.

[9] Utiliza-se aqui a expressão espectador-agente como modo de indicar a relação ativa do sujeito que entra em contato com um trabalho de net.art. Diferente de um trabalho de arte sumariamente contemplativo, uma peça de net.art necessita, já de início, de ações e escolhas do espectador para que possa “acontecer”. Sem que o espectador seja também um agente ativo, que aperte botões e escolha caminhos, o trabalho de net.art não pode existir em atualidade, mas apenas permanece virtualmente existente.

[10] <http://mouchette.org/fly/

[11] <http://mouchette.org/fly/index.html

[12] A palavra mouche, do francês, significa mosca. O jogo com esse sentido aparece em “Mouchette.org” do título da personagem até as falas que assumem o papel da mosca. Essa é uma referência evidente a morte, como sugerem muitas imagens presentes no trabalho e não seria exagero reconhecer essa mesma referência no romance de George Bernanos.

[13] Pelas configurações dessa peça de programação, as frases geradas na “página pós-morte” de Mouchette podem ser bem variadas (KERANGAL, 2004, p. 56). Essa espécie de programação torna as experiências com o trabalho bastante particulares, porém, dependem cada vez mais da disponibilidade do espectador-agente para acompanhar as variações ocasionais.

[14] No endereço <http://www.mouchette.org/fly/how.html é possível acessar as repostas dadas pelos espectadores-agentes em ordem de data.

[15] <http://www.mouchette.org/fly/flies.html

[16] Devemos considerar que a persona virtual que centraliza esse trabalho de net.art pode e é afetada pelas ações do público. Falar em “carne sintética” é considerar que Mouchette possui um corpo feito de palavras, pixels e códigos. Esse corpo possui seus sentidos, pode ouvir, pode ver e sentir o toque. Assim como o corpo orgânico, todas a influências sofridas nele permanecem e afetam seu modo de ser, viver e morrer.

[17] Retiramos o conceito de zerodimensionalidade da proposta de história da cultura apresentada por Vilém Flüsser, na qual a humanidade partiria de um movimento de abstração de circunstâncias observáveis e atingiria a abstração de conceitos em códigos numéricos. Na proposta de Flüsser, sairíamos do tridimensional para o bidimensional, para o unidimensional e atualmente lidaríamos com o zerodimensional das imagens sintéticas (FLÜSSER, 2008, p.18).

[18] Os termos ciberespaço e cibercultura aparecem neste texto sem ignorar os discursos que proclamam seu desaparecimento com a ascensão da internet móvel. No entanto, considera-se tanto o momento de desenvolvimento do principal trabalho de arte aqui analisado quanto as razões para manutenção desses termos, já dada por Lúcia Santaella (2010, p. 71).

[19]Disponível em: <http://www.salon.com/2013/02/12/the_end_of_cyberspace/ Acesso em: 27 nov 2014.

[20] Sobre essa dupla condição da internet, ver KENNEDY, 2006.

[21] Usamos aqui o termo “agente” em sentido similar aos “actantes” da Teoria Ator-Rede. “Tudo aquilo que gera uma ação, que produz movimento e diferença, podendo ser humano ou não humano. […] O actante é tanto o governante, o cientista, o laboratório, a substância química, os gráficos e tabelas […]” (LEMOS, 2013, p. 42).

[22]http://siegen.mouchette.org/

[23] Apesar de haver uma distinção direta dos mecanismos de exibição de um trabalho de net.artpara um trabalho exibido com a mediação da instituição muselógica, além das questões disparadas pelo fato de, em 2007, a autoria de “Mouchette.org” ainda encontrar-se oculta, não nos ateremos nesse embate por ordem de discurso. Na época Mouchette colocava-se como uma entidade a qual era impossível o acesso a “vida real” e com alguma ironia convida o público para presenciar um trabalho sobre o qual ela mesma não possuiria controle. <http://turbulence.org/blog/2007/11/05/to-be-or-not-to-be-mouchette/

[24] O formulário pode ser acessado no endereço <http://mouchette.org/suicide/suikit.html

[25] <http://mouchette.org/suicide/answers.php3?cat=favourite

[26] Apresentação do trabalho utilizada para divulgação da exibição no Museu de Arte Contemporânea de Siegen É mantida no arquivo original em flash. <http://elmcip.net/creative-work/be-or-not-be-mouchette

[27] <http://www.teleportacia.org/war



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