Colaboração como Substância da Proposta de Arte: Múltiplas Retomadas em “Mouchette.org”
Artigo apresentado no Seminário Ibero-americano Poéticas da Criação ES, 2014, Vitória: UFES. São Paulo: Intermeios, p. 212-219.
Angela Grando/ Rodrigo Hipólito
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“How can we know who we are when our views and choices are computer-assisted and distributed in large databases in virtual space and time?” Kerkhove 2009
Collaboration as Substance of the Art Proposal: Multiples Retaken in “Mouchette.org”
Abstract: Through the Martine Neddam’s work of net.art “Mouchette.org” (1996), we think the importance of the activity of the participator for the art work. Under the perspective of Paul Virilio, we propose the understanding of participation as a “substance” of the art proposal and ask for the consequences, or “accidents”, resulting from the inclusion of this feature in the processes of art.
Keywords:Mouchette.org; Substance; Accident; Participation.
Resumo: Através do trabalho de net.art “Mouchette.org” (1996), de Martine Neddam, pensamos, nesse texto, a importância da atividade do participador para o trabalho de arte. Sob a ótica de Paul Virilio, apontamos para o entendimento da participação como “substância” da proposta de arte e perguntamos pelas consequências, ou, “acidentes”, decorrentes da inclusão dessa característica nos processos de arte.
Palavras-chave: Mouchette.org; Substância; Acidente; Participação.
“Como podemos saber quem somos quando nossos pontos de vista e as nossas escolhas forem assistidos por computador e distribuídos em grandes bases de dados no espaço e tempo virtuais?” (KERCKHOVE, 2009, p. 203).
Por que Mouchette não morre?
Em 1947 a menina Mouchette surge nas páginas da literatura de George Bernanos. Seus desafortunados passos pela narrativa mostram uma comunidade sádica, uma família movediça e um descrédito no humano que a levam ao suicídio. Mesmo assim, Mouchette não morre.
Em 1967, ainda sem completar seus 13 anos de idade, ela ressurge, em movimento, pela direção de Robert Bresson. Agora com um rosto, encarnada e exposta como algo real, sua história ganha uma sobrevida. Nesse segundo momento, a personagem não apresenta apenas um retorno ou uma retomada, mas sim um desdobramento mais variado. Mouchette, ao ser posta nas telas do cinema, é entregue, simultaneamente, para a interpretação da câmera, da adaptação de roteiro e da atriz que lhe confere imagem e carne. Cada uma dessas subcamadas é parte dos alicerces que “continuam” a primeira Mouchette. Ao cerrar a tela, com 78 minutos, apesar de o texto dizer e da imagem mostrar, a morte insiste em não se consumar. Em 1996 Mouchette torna-se artista. Ainda próxima dos 13 anos e sem saber o melhor modo de cometer suicídio quando completar a idade final,[1] a menina diz residir em Amsterdã e ser artista. Na homepage encontramos a fotografia da criança cabisbaixa, no canto superior esquerdo, [2] uma imagem de flor como pano de fundo e ilustrações de moscas toscamente recortadas e animadas, há links através dos quais podemos procurar informações sobre a suposta artista.
Dizemos “suposta” apenas ao observar o contexto no qual “Mouchette.org” é aberto para o acesso público. Em 1996 a página era, evidentemente, uma referência à personagem já consagrada. No entanto, apenas esse fato era uma evidência. Dificilmente uma menina de quase 13 havia aberto a página, embora o tratamento das imagens levasse para a crueza de um esforço infantil: ilustrações e desenhos esquemáticos, cores, molduras, recortes e sobreposições secos e sem gradações. Não havia qualquer menção de créditos e mesmo o currículo que pode ser encontrado na página, apresentava a personagem como artista, sem conexões que pudessem levar aos adultos por trás da produção. Diante da ausência dessas informações, o conteúdo de “Mouchette.org” tornou-se controverso. A mistura de uma figura infantil não “interpretada” ou não cerceada por uma margem ficcional bem definida, com alusões sexuais e funestas reverberou críticas e agregou fãs massivamente, até a revelação do nome da autora por trás da produção, em 2010 (DEKKER, 2014). “Mouchette.org” é um dos poucos trabalhos surgidos na primeira fase da net.art, conhecida como “fase heroica”, a permanecer online e disponível para o acesso constantemente (Idem, 2014). Martine Neddam, artista que assina o trabalho, tornou-se conhecida por criar o que chama de “personas virtuais”.[3] No caso de “Mouchette.org”, Neddam tomou a consagrada personagem nascida de Bernanos para servir de atrativo num jogo com as capacidades comunicativa e expressiva dos frequentadores do, então recente, ciberespaço.[4]
Através dos links na página inicial do site é possível acessar desde o currículo da personagem e imagem de sua residência em Amsterdã, passando por peças de arte de sua autoria e páginas aparentemente desgarradas dos demais conteúdos, até formulários para contatar a “artista”, sitesinspirados em “Mouchette.org” e redes de discussão/divulgação sobre arte na Rede. Cada uma dessas possibilidades traz interesses específicos para a discussão, mas todas compartilham a importância central da participação do usuário da Rede.
Diante da página inicial de “Mouchette.org” o usuário-agente, influenciado pela aparência amadora das imagens, pelos sons de gemidos e risadas de criança e mesmo por algum prévio conhecimento do trabalho de arte, escolhe entre os botões disponíveis para dar os primeiros passos em sua “exploração”.[5] Nesse primeiro grupo de possibilidades de uso do site, que conta com algumas informações visuais diretamente ligadas com a ideia de uma artista mirim (currículo, referências textuais, apresentação), a participação do usuário-agente está, principalmente, no ato de escolher através de qual link seguir. Note-se, nesse caso, que há indicações minimamente certeiras sobre o destino presente em cada link: loja, casa, mudança de idioma, idade e categorias para pesquisa.
Num segundo grupo de possibilidades, encontramos caminhos com indicativos bem mais imprecisos. Na parte inferior da página inicial encontra-se uma série de links, guardados como opções.[6] Cada uma dessas opções traz uma informação difícil de adivinhar apenas pelo indicativo textual. Ao eleger alguns dos botões o usuário-agente pode deparar-se com pequenas imagens animadas com referências fúnebres, sons de uivo, músicas, o documento que retirou parte dos conteúdos do site,[7] e muitos formulários de contato. A maior parte das novas páginas abertas traz caminhos mais improváveis.
No terceiro grupo de possibilidades, temos páginas com uma quantidade suficientemente grande de conteúdos para exigir a atenção do usuário-agente e a abertura para contatar Mouchette. Devemos por em conta nesse grupo também as páginas desdobradas de “Mouchette.org”, tanto aquelas que poderiam comportar-se como outros trabalhos de net.org como aquelas que passam por informativos e redes de discussão, com exemplo mais relevante no anexo <about.mouchette.org>, organizado por Neddam após a revelação da autoria. Nesse ponto o nível de participação dos usuários está tanto na capacidade de escolher os caminhos quanto na inserção de conteúdos no trabalho. Do preenchimento dos formulários para tentativa de contato, na resposta aos questionários sobre o destino da infanta até a inclusão de conteúdos, por parte da própria Neddam, produzidos “sobre ‘Mouchette.org”, o usuário-agente passa a alimentar, compor e manter vivo o trabalho de arte.
Sem a necessidade de passarmos em revista todos os caminhos encontrados a partir da página inicial do trabalho, o que seria mesmo impraticável, percebemos que em cada grupo exposto acima o papel do usuário-agente é fundamental. De fato, caso não haja um momento de escolha, nada acontecerá além das moscas continuarem a circular sobre imagem estática de uma flor. Dar “movimento” ao trabalho, fazer com ele “aconteça” e expresse alguma informação consumível ou dialogável somente é possível a partir da atuação do sujeito que acessa “Mouchette.org”. O primeiro grupo de possibilidades apresenta características muito próximas às encontradas na maior parte dos sites pessoais e comerciais da atualidade. São opções aparentemente bem diretas e fáceis de visualizar na interface da página. Mas, a partir da primeira escolha, isto é, ao eleger um dos botões e acessar o que está contido nele, essa ligação evidente entre o botão e conteúdos se desfaz. Sem esquecer a chance de o acesso terminar em uma página sem saída, uma página sem qualquer outro link que permita continuar o passeio, as imagens animadas, os sons inesperados e o grande número de dados adquiridos de variados canais da web tornam as escolhas complexas e de resultados imprevisíveis. Em suma, o ato de escolher é o ponto crucial para todas as possibilidades de uso e fruição do trabalho. Abrir caminhos para o surgimento e a experiência com o imprevisto talvez seja o sentido maior do poder de deliberação. Assim, é necessário que o sujeito esteja no interior do processo.
Deliberar é a palavra escolhida por Flüsser para caracterizar o surgimento de um conhecimento novo ou o ato de criar (2008, p. 33). Pra Flüsser o Homo Ludens, sujeito que se exercita ao jogar com os dados disponíveis num mundo profundamente imerso numa rede telemática, seria um criador. Ao sobrepujar censuras internas e externas o jogador seria capaz de digerir as informações em constante fluxo e gerar informação “nova”, isso é criar (Idem, p. 118). Entende-se, assim, que os poderes de deliberação e construção por parte do usuário-agente estão na base de “Mouchette.org”, pois somente o acesso à página não inicia o jogo de informações ou abre a possibilidade de enriquecimento do site. A permanência de “Mouchette.org” online desde 1996 e seu constante crescimento estão intimamente ligados e são em grande parte consequência direta do trabalho do próprio público e admiradores da obra e da personagem usada nela. Dizer que as ações do público “para” e “com” “Mouchette” dão vida para o trabalho é apontar para uma dupla via de incorporação aberta pela participação.
Incorporação é, para Santaella, conceito chave para lidar com a experiência no ciberespaço (SANTAELLA, 2004, p. 53). Ao considerar que as relações de interatividade não permitem o distanciamento entre o sujeito e aquilo que ele pode identificar, ou, entre o sujeito e aquilo que se encontra “fora”, Santaella concorda com Margaret Morse: “Nessa lógica de reversibilidade, entramos na pele do outro, tornamo-nos o outro” (MORSE, 1994). Ao falarmos de experiências com trabalhos de arte, talvez a expressão “tornamo-nos o outro” deva ser entendida como uma continua expansão da pluralidade do Eu em vivências.
Cada uma das retomadas de Mouchette adensa o papel de “ferramenta” da personagem. Se na literatura a identificação e a interpretação são o modo de acesso à personagem, no cinema encontramos raízes de um processo de incorporação que envolve toda a produção da película, incluindo a atriz e a adaptação de roteiro. A mudança que ocorre com a retomada da personagem em “Mouchette.org” põe em primeiro plano o sujeito que acessa e interage com a interface. Na prática, a menina Mouchette apresentada no site poderia ser de carne e osso ou não. As trocas possíveis, nos diálogos entre os usuários-agentes e a “persona virtual”, que alimentam ainda hoje o trabalho, ocorrem quando a personagem e seu universo básico são incorporados pelo público e esse, consequentemente, também é incorporado a “Mouchette.org”. Deve-se pensar nesse público não somente como sujeitos por detrás de telas de computador, mas sim como sujeitos integrados as interfaces e tecnologias. [8]
Quando consideramos que o “corpo” maior do trabalho e seu funcionamento só se realizam através dessa dupla via de incorporação, a mudança na retomada da personagem em “Mouchette.org” colocaria a participação como a própria “substância” [9] do trabalho. Essa espécie de apropriação, realizada nos processos de deliberação e incorporação, é de suma importância para a construção da “persona virtual”, tanto em “Mouchette.org” quando no caso dos habitantes do ciberespaço de maneira geral. A expressão do sujeito na rede depende do modo como ele incorpora/delibera e é incorporado/deliberado. Mouchette aparece como um “acontecimento” que continua por décadas, mas, ao atingir o trabalho de net.art, uma das características desse acontecimento pode ser sublinhada: seu caráter de “ferramenta”. O uso da ferramenta Mouchette e a incorporação da expressão dos usuários-agentes aparece como aquilo que subsiste sob a forma apresentada e usada.
Aqui devemos retornar a pergunta de Kerckholve, que abre o artigo, pois, além das camadas de apropriação temporais que já observamos em “Mouchette.org”, encontramos camadas referentes de tecnologias, mídias, ferramentas. A pergunta, que quando formulada apontava para o futuro, agora expressa uma situação presente. No entanto, a atualidade do fato não significa que tenhamos um conhecimento mais profundo da realidade. A dissolução do sujeito não seria uma questão, pois talvez ele jamais tenha sido uno (SANTAELLA, 2004, p. 45). Com tempo e espaço submetidos à comunicação “instantânea”, a mediação das mídias é o grande delimitador das subjetividades na era digital/virtual. A experiência com o ciberespaço traz como situação nova a possibilidade de encenação das subjetividades múltiplas. A multiplicidade identitária, como a cisão do sujeito, talvez sempre tenha estado presente, mas a possibilidade prática de sua encenação surge com o ciberespaço. Ele permite o contato com o outro numa relação de jogo, pois se trata de uma realidade sempre simulada. Tudo o que ocorre com o ciberespaço obedece à codificação e tradução possíveis através dos aparelhos. [10]
“Mouchette.org” somente pode ser realizado e acessado dentro dessas ferramentas. Mas, crer que nós simplesmente “usamos” essas ferramentas seria um pensamento inocente. As ferramentas também definem nosso caminho e a técnica nos usa. Esses raciocínios, presentes tanto em Santaella,[11] quanto em Flüsser[12] e também em Virilio. No caso do último nome, a presença cada vez mais densa de tecnologias, ferramentas e mídias complexas torna urgente que pensemos simultaneamente “a substância e o acidente”. O acidente nunca se desgarra da sua velocidade de surgimento imprevisto. Por isso, agora, com a virtualização e produção de conhecimento conjunto em escala global, devemos pensar o acidente geograficamente deslocalizado (VIRILIO, 2009, p. 29-30). “No hay adquisición sin pérdida. Si inventar la substancia, es, indirectamente, inventar el accidente, más dramático es este último cuanto más poderosa y eficaz es la invención.” (Idem, p. 55). Na linha de pensamento de Virilio, a genética e a informática estariam ligadas a geração não mais de acidentes do artifício, mas de “acidentes do real”. De fato, falaríamos de acidentes provindos do artifício, mas numa escala imaterial, global e imediata. Mas, não devemos assumir aqui toda a visão de Virilio. Após expressar, em diversos pontos de seu livro, sua preocupação pelas consequências catastróficas de certos aparatos e tecnologias, e também como essas consequências transformaram-se até atingir o acidente do tempo (caso de Chernobyl), o autor volta ao cerne teórico.[13]
Em realidad, habría que examinar urgentemente, una vez más, la acepción filosófica según la cual el ACCIDENTE es relativo y contingente, y la SUBSTANCIA, absoluta y necesaria. Del latín accidens, la palabra alude a lo que sobreviene imprevistamente en el aparato, sistema o producto, lo inesperado, la sorpresa del desperfecto o de la destruición. Como si ese ‘desperfecto’, en cierto modo, para que aparezca al ponerse en ejecución el producto… (VIRILIO, 2009, p. 113).
O autor questiona o que é encoberto por essa linha que privilegia o modo de produção e coloca a consequente falha, ou acidente, como algo contingente e imprevisível. Se revertermos o raciocínio, poderíamos inventar primeiramente o acidente e assim determinar “a índole da famosa substância do produto”. Em outras palavras, poderíamos pensar as consequências advindas de uma transformação antes de determinarmos ou definirmos essa transformação. Pois, a definição, o entendimento de uma produção, depende do suposto imprevisto que nasce dela.
A resposta para nossa pergunta inicial, “por que Mouchette não morre”, está tanto na sua assunção como ferramenta quanto no seu ressurgimento noutra espécie de substância, a participação do público. Mouchette não morre por não ser mais um constructo passível de ser lido ou assistido, mas sim o resultado da confluência das ações de diversas personas tão simuladas quanto ela. No entanto, se assumimos o tempo imediato do acidente em relação ao surgimento da substância (VIRILIO, 2009, p, 29), devemos considerar qual consequência acidental há na participação que subsiste em “Mouchette.org”. A contínua transformação do trabalho e o ressurgimento da ferramenta Mouchette são consequências desse envolvimento do sujeito que age sobre a proposta de arte. Certamente, os acidentes se multiplicam na medida em que novas informações surgem da ação do público. Desse modo, o presente texto constitui-se da abertura de um óculo através do qual podemos pensar diretamente a efetiva participação do espectador no desenvolvimento e continuidade das propostas de arte.
Referências
BERNANOS, Georges. Nova História de Mouchette. São Paulo: Realizações, 2011.
BRESSON, Robert. Mouchette. 78 min. Paris: Argos Films, Parc Film, 1967.
DEKKER, Annet. Assembling traces, or the conservation of net art. Necsus: European Journal of Media Studies. Spring 2014, June 13, 2014. Disponível em: <http://www.necsus-ejms.org/assembling-traces-conservation-net-art/>. Acesso em 10 de set. de 2014.
FLÜSSER, Vilém. O Universo das Imagens Técnicas: Elogio da Superficialidade. São Paulo: Annablume, 2008.
______. Filosofia da caixa preta: ensaios para uma futura filosofia da fotografia. Rio de Janeiro: Annablume, 2011.
_____. O Mundo Codificado: por uma filosofia do designe e da comunicação. São Paulo: Cosac Naify, 2013.
MORSE, Margaret. What cyborgs eat? Oral logic in na information society. In: BENDEN, Gretchen; DRUKREY, T. Culture on the Brink: Ideologies of technology. Seatle: Bay Press, 1994, p. 164-165.
KERCKHOVE, Derrick. A Pele da Cultura. Investigando a Nova Realidade Eletrônica. São Paulo: Annablume, 2009.
SANTAELLA, Lucia. Sujeito, subjetividade e identidade no ciberespaço. LEÃO, Lúcia (org.). Derivas: Cartografias do ciberespaço. São Paulo: Annablume, 2004, p. 45.54.
______. Os espaços líquidos da cibermídia. E-Compós: Revista da Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação. V.2, 2005. Disponível em <http://www.compos.org.br/seer/index.php/e-compos/article/view/26> Acesso em 16 de set. de 2014.
_____. Ecologia Pluralista da Comunicação: conectividade, mobilidade, ubiquidade. São Paulo: Paulus, 2010.
VIRILIO, Paul. El Accidente Original. 1ª Ed. – Buenos Aires: Amorrortu, 2009.
[1] Disponível em: <http://www.mouchette.org/suicide/answers.php3?id=23879> . Acesso em: 26 set 2014.
[2] A imagem (avatar) de Mouchette, inicialmente restringia-se a fotografia em cores de uma menina muito parecida com a atriz que deu vida a personagem no cinema. Aos poucos esse avatar também tornou-se ferramenta de jogo no trabalho, pois passou a alterar-se randomicamente nos acessos, mostrando imagens de outras pessoas, flores e mesmo montruosidades.
[3] Disponível em: <http://neddam.org/>. Acesso em: 26 set 2014.
[4] Sobre a manutenção de termos como ciberespaço e cibercultura, questionados na última década, consideramos tanto a época em que o trabalho aqui apresentado foi composto (1994), quando as dúvidas a respeito dos argumentos que servem para professar a morte do ciber. Soojung-Kim e Hinchicliffe argumentam, baseados na difusão das tecnologias móveis com banda larga, que esse novo modo de acesso, distinto daquele em que o usuário sentava-se diante do PC, constituiria uma entrada definitiva do ciberespaço na realidade e assim o matariam. Em contraponto, Santaella mantém a ideia de que, se nós “acessamos” e independente do modo como se dê esse acesso, isso pressupõe uma relação com uma condição distinta do ciber, na qual nos encontramos e a partir da qual acessamos (SANTAELLA, 2010, 76-71).
[5] Certamente, ao pensarmos nesse primeiro acesso a homepage de “Mouchette.org”, devemos considerar tanto as transformações ocorridas no tempo de vida do trabalho quanto da própria Internet. Dificilmente, hoje, um usuário chega até “Mouchette.org” sem uma indicação ou ligeiro envolvimento com o campo da arte.
[6] “m.org.me, 7 songs, dead fly, lullaby, cat, flesh&blood, suicide kit, birthday, trademark, film quiz, fan-club, secret, dummy, fan shop, about me, paintings, triple x e Tokio, clind shells, name, whattlechik”, em 12 de Set. 2014.
[7] Havia, na época da abertura do trabalho, uma espécie de questionário que referenciava diretamente o filme de Robert Bresson, o que levou a viúva do cineasta a mover uma ação judicial para retirada de tal material (Cf. LUINING, 2004).
[8] O próprio ciberespaço talvez consista, hoje, tanto dessa “realidade multidirecional, artificial ou virtual incorporada a uma rede global” (SANTAELLA, 2005, p. 3) quanto dos movimentos e incorporações entre humano, máquina, espaço geográfico e espaço virtual.
[9] Usamos aqui os termos “substância” e “acidente” dentro da concepção de Paul Virilio (2009). Substância, para Virilio, relaciona-se como o início de um conhecimento ou fato e encontra-se no produto, aparato ou sistema. Sustância seria propriamente aquilo que subsiste em algo e Acidente a consequência imprevista da ação ou do uso da substância. “Tanto para Aristoteles ayer como para nosotros hoy, si el accidente revela la substancia es porque lo que sucede (accidens) es una surte de análisis, un tecnoanálises, de lo que está debajo (substare) de todo conocimiento.” (VIRILIO, 2009. p. 25)
[10] Os conceitos de “aparelho” e “programa” nos falam tanto de estruturas funcionais, como as máquinas fotográficas, quanto, num âmbito mais extenso, de estruturas que contemplam a organização das atividades humanas. Flüsser usa a câmera fotográfica como modelo básico de aparelho, pois possui suas capacidades programadas, inscritas em sua constituição, embora o fotógrafo não necessite saber de seu funcionamento inteiro para fotografar. Somente se podem produzir as fotografias previstas pelo programa da câmera, e este é complexo suficiente para funcionar no interior de uma “caixa-preta”. “Querer definir aparelhos é querer elaborar categorias apropriadas à cultura pós-industrial […] Se considerarmos o aparelhos fotográfico sob tal prisma, constataremos que o estar programado é que o caracteriza. As superfícies simbólicas que produz estão, de alguma forma, inscritas previamente (“programadas”, pré-escritas”) por aqueles que o produziram.” (FLÜSSER, 2010, p. 42). Esse mesmo raciocínio é estendido pelo autor para o universo surgido com o predomínio das imagens computadorizadas (Cf. FLÜSSER, 2008).
[11] A autora nos lembra de que a linguagem seria um advento técnico. Sua fragilidade estaria na efemeridade da fala, suprida pela escrita. Nessa linda de crescimento da capacidade de armazenamento, preservação e processamento o cérebro humano tenderia a crescer até necessitar de ferramentas que ampliem suas capacidades. O surgimento das máquinas inteligentes, culminando nos computadores, promoveriam não apenas essa ampliação como também a aproximação de dois campos até então separados: ciência e estética, objetividade e subjetividade (SANTAELLA, 2010, p. 55-63).
[12] Flüsser considera que o homem sempre utilizou máquinas, orgânicas e inorgânicas, para potencializar suas ferramentas naturais. Máquinas orgânicas seria estruturas inteligentes, mas complexas demais para serem facilmente construídas, máquinas inorgânicas não possuiriam essa inteligências, mas poderiam ser construídas e ganhariam em durabilidade. Com os avanços do século XX aprenderíamos a construir máquinas com a durabilidade de inorgânico e a inteligência do orgânico. Mas, quanto mais complexa a máquina, mais influenciados seríamos por suas possibilidades. A essa influencia Flüsser chama “contra-ataque” (FLÜSSER, 2013, p. 45-50).
[13] Assumir integralmente o pensando do Virilio expresso nesse livro seria assumir também uma postura moral que talvez seja exageradamente compromissada com valores vigentes e inquebrantáveis de um passado recente, de antes da proliferação da tecnologia digital e da contínua mesclagem (também dissolução) de culturas.
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